Monday, September 17, 2012

Preto e branco – Luis Fernando Verissimo



“Escrevo peças porque escrever diálogos é a única maneira respeitável de você se contradizer.” 
Tom Stoppard 

Um palco vazio. Entram dois homens, um vestido de preto e o outro vestido de branco.
Eles representam os dois lados do Autor. Isso a platéia já sabe porque está escrito no programa.
Pelo Autor. Ou por um dos lados do Autor, já que o outro era contra.
Na sua opinião, dar muitas explicações para a platéia subverte o misto de cumplicidade e hostilidade que deve existir entre palco e público, e nada destrói este clima mais depressa do que o público descobrir que está entendendo tudo.

HOMEM DE BRANCO - Preto.
HOMEM DE PRETO - Branco.
BRANCO – Por que não uma mistura dos dois?
PRETO – Vem você com essa sua absurda mania de conciliação. Essa volúpia pelo entendimento. Essa tara pelo meio-termo!
BRANCO – Se não fosse isso, nós não estaríamos aqui. Foi minha moderação que nos manteve longe de brigas. Foi minha ponderação que nos preservou. Se eu fosse atrás de você…
PRETO - Nós teríamos vivido! Pouco, mas com um brilho intenso. Teríamos dito tudo que nos viesse à cabeça. Distinguido o pão do queijo com audácia. Colocado pingos destemidos em todos os “is”. Dado nome e sobrenome a todos os bois!
BRANCO – Em vez disso, fomos civilizados. Isto é, contidos e cordatos.
PRETO – E temos os tiques nervosos para provar.
BRANCO – Você preferiria ter dito a piada que magoaria o amigo? A verdade que destruiria o amor? O insulto que nos levaria ao setor de traumatismo do Pronto Socorro?
PRETO – Preferiria. Para poder dizer que não me calei. Para poder dizer “Eu disse!”. BRANCO -Ainda bem que não é você que manda em nós.
PRETO – Não, é você. Sempre fazemos o que você determina. Ou não fazemos. Não dizemos. Não vivemos! Estou dentro de você, fazendo, dizendo e vivendo só em pensamento. Se ao menos eu pudesse sair aos sábados…
BRANCO – Para que, para nos matar? Pior, para nos envergonhar?
PRETO – Melhor se envergonhar pelo dito e o feito do que pelo não dito e o adiado. Você sabe que cada soco que um homem não dá encurta a sua vida em 17 dias? E, cada vez que um homem pensa em sair dançando um bolero na rua e se controla, seu fígado aumenta? E cada…
BRANCO – Bobagem. Ainda bem que eu sou o verdadeiro nós.
PRETO - Não, eu sou o verdadeiro você.
BRANCO – Você só é nós em pensamento. Você é a minha abstração.
PRETO – Sou tudo o que em nós é autêntico. Ou seja: você é a minha falsificação.
BRANCO -Mas quem aparece sou eu.
PRETO – Então o que eu estou fazendo neste palco, e ainda por cima de malha justa?
BRANCO -Você só está aqui como uma velha tradição teatral, o interlocutor providencial. Um artifício cênico, para o Autor não falar sozinho.
PRETO – Quer dizer que eu só entrei em cena para dizer…
BRANCO -Branco. E eu…
PRETO – Preto. Por quê?
BRANCO -Para mostrar à platéia que todo homem é a soma, ou a mescla, das suas contradições. Que no fim o destino comum de todos não é ser branco nem preto, é ser cinza. E não estou falando em cremação. PRETO – Mostrar a quem?
BRANCO – À pla… Onde está a platéia?!
PRETO – Foram todos embora.
BRANCO – Porque não entenderam o nosso diálogo?
PRETO -Porque entenderam. Eu não disse?

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Monday, September 17, 2012

Preto e branco – Luis Fernando Verissimo



“Escrevo peças porque escrever diálogos é a única maneira respeitável de você se contradizer.” 
Tom Stoppard 

Um palco vazio. Entram dois homens, um vestido de preto e o outro vestido de branco.
Eles representam os dois lados do Autor. Isso a platéia já sabe porque está escrito no programa.
Pelo Autor. Ou por um dos lados do Autor, já que o outro era contra.
Na sua opinião, dar muitas explicações para a platéia subverte o misto de cumplicidade e hostilidade que deve existir entre palco e público, e nada destrói este clima mais depressa do que o público descobrir que está entendendo tudo.

HOMEM DE BRANCO - Preto.
HOMEM DE PRETO - Branco.
BRANCO – Por que não uma mistura dos dois?
PRETO – Vem você com essa sua absurda mania de conciliação. Essa volúpia pelo entendimento. Essa tara pelo meio-termo!
BRANCO – Se não fosse isso, nós não estaríamos aqui. Foi minha moderação que nos manteve longe de brigas. Foi minha ponderação que nos preservou. Se eu fosse atrás de você…
PRETO - Nós teríamos vivido! Pouco, mas com um brilho intenso. Teríamos dito tudo que nos viesse à cabeça. Distinguido o pão do queijo com audácia. Colocado pingos destemidos em todos os “is”. Dado nome e sobrenome a todos os bois!
BRANCO – Em vez disso, fomos civilizados. Isto é, contidos e cordatos.
PRETO – E temos os tiques nervosos para provar.
BRANCO – Você preferiria ter dito a piada que magoaria o amigo? A verdade que destruiria o amor? O insulto que nos levaria ao setor de traumatismo do Pronto Socorro?
PRETO – Preferiria. Para poder dizer que não me calei. Para poder dizer “Eu disse!”. BRANCO -Ainda bem que não é você que manda em nós.
PRETO – Não, é você. Sempre fazemos o que você determina. Ou não fazemos. Não dizemos. Não vivemos! Estou dentro de você, fazendo, dizendo e vivendo só em pensamento. Se ao menos eu pudesse sair aos sábados…
BRANCO – Para que, para nos matar? Pior, para nos envergonhar?
PRETO – Melhor se envergonhar pelo dito e o feito do que pelo não dito e o adiado. Você sabe que cada soco que um homem não dá encurta a sua vida em 17 dias? E, cada vez que um homem pensa em sair dançando um bolero na rua e se controla, seu fígado aumenta? E cada…
BRANCO – Bobagem. Ainda bem que eu sou o verdadeiro nós.
PRETO - Não, eu sou o verdadeiro você.
BRANCO – Você só é nós em pensamento. Você é a minha abstração.
PRETO – Sou tudo o que em nós é autêntico. Ou seja: você é a minha falsificação.
BRANCO -Mas quem aparece sou eu.
PRETO – Então o que eu estou fazendo neste palco, e ainda por cima de malha justa?
BRANCO -Você só está aqui como uma velha tradição teatral, o interlocutor providencial. Um artifício cênico, para o Autor não falar sozinho.
PRETO – Quer dizer que eu só entrei em cena para dizer…
BRANCO -Branco. E eu…
PRETO – Preto. Por quê?
BRANCO -Para mostrar à platéia que todo homem é a soma, ou a mescla, das suas contradições. Que no fim o destino comum de todos não é ser branco nem preto, é ser cinza. E não estou falando em cremação. PRETO – Mostrar a quem?
BRANCO – À pla… Onde está a platéia?!
PRETO – Foram todos embora.
BRANCO – Porque não entenderam o nosso diálogo?
PRETO -Porque entenderam. Eu não disse?

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